Relacionamentos

Desmistificando o BDSM

Brinquedos eróticos usados na prática do BDSM

BDSM é um acrônimo para bondage e disciplina (BD), domínio e submissão (DS) e sadismo e masoquismo (SM). A prática abrange uma ampla gama de atividades e interesses sexuais, incluindo, entre outros:

-Bondage, que se refere ao uso de restrições físicas para atingir o prazer sexual, como algemas, cordas, correntes etc;

-Disciplina, que se refere ao uso de regras e rituais para aumentar a excitação sexual;

-Dominância e submissão, que se refere a dar e receber poder dentro de uma relação sexual, um jogo com a dinâmica de poder em uma relação sexual;

-Sadismo e masoquismo, que se refere a sofrer e/ou receber dor para gratificação sexual.

Embora a prática já exista há séculos, só recentemente ganhou popularidade. Infelizmente, o BDSM é frequentemente visto como uma prática sexual desviante ou anormal. Isso provavelmente se deve ao fato de envolver o uso de poder e controle, o que pode ser visto como ameaçador para algumas pessoas. Além disso, o BDSM pode ser visto como uma forma de violência, o que aumenta a percepção negativa dele.

Apesar dos preconceitos negativos, o BDSM é uma atividade sexual consensual e segura que pode ser desfrutada por todas as partes envolvidas. Quando feito corretamente, pode ser uma experiência incrivelmente prazerosa e satisfatória para todos os envolvidos. Se você está interessado em explorar o BDSM, é importante fazer sua pesquisa e encontrar um parceiro seguro e consensual.

Para trazer uma visão mais aprofundada sobre a comunidade BDSM e suas práticas, entrevistamos a socióloga e especialista em BDSM, Raíra Boher. Confira a seguir a entrevista na íntegra:

Maria Beatriz: O que é o BDSM?

Raíra Boher: O BDSM não é necessariamente sobre sexo. Ele é um estilo de vida que vai juntar práticas fetichistas, que já existem há séculos. O acrônimo BDSM significa Bondage, que é a imobilização; Dominação; Submissão ou Sadismo e o Masoquismo. Então o acrônimo fala sobre as conduções dessa prática fetichista. E a base principal para que essas coisas aconteçam é a consensualidade. Ao longo de uma luta política identitária ao longo dos últimos 20 ou 30 anos, a comunidade conseguiu, inclusive, a despatologização do BDSM nos manuais de psiquiatria devido à compreensão de que são práticas consensuais. Se não houver consenso não é BDSM, é abuso. Então é preciso entender que, para praticar o BDSM, você tem tem que entender: o que é, quais são as suas práticas, quais são as suas regras. Você não pode ser uma pessoa que está confusa mentalmente, ou seja, não pode estar embriagado, não pode estar fora de si, digamos assim. Você tem que estar apto para consensualizar com aquela prática. E, geralmente, pra poder dar início a essas práticas, tem que ter uma negociação entre as pessoas que estão interessadas em praticar. Nessa negociação definem-se os limites de cada um, até onde você gostaria de ir, interesses em práticas, quais são as suas práticas, e a partir dessa negociação, você vai definir se aquele parceiro de sessão é realmente o parceiro certo, e vocês só podem fazer o que está acordado nesse contrato.

Ilustração feita por Cécile Dormeau

É importante falar também que essas práticas trabalham com o controle. É necessário que tenha uma boa condução para não ultrapassar esses limites. Mas, caso algo saia do controle ou os limites sejam atingidos, para qualquer um dos envolvidos, mas especialmente para aquele que está sendo conduzido, existe uma palavra de segurança – que é acordada previamente também. Na comunidade como um modo geral, a palavra de segurança costuma ser “vermelho”, mas pode ser qualquer outra palavra. A palavra “não” é dificilmente utilizada porque, muitas vezes, dentro desses jogos, a palavra “não” pode ser parte da dinâmica. Então, a qualquer momento que não esteja sendo mais prazeroso, não esteja sendo interessante para um dos envolvidos no jogo, a palavra “vermelho” é dita e termina ali, o jogo para naquele momento e, novamente, se tem uma conversa, uma negociação para entender o que aconteceu, ver como poderia melhorar, o que pode ser feito a partir dali ou se a sessão termina ali mesmo.

O BDSM, então, surge nos anos noventa a partir de comunidades organizadas, surge já de uma comunidade gay, da comunidade do coro nos Estados Unidos, depois difunde na Alemanha, na Holanda, na Inglaterra… E essas práticas do sadomasoquismo erótico já existem desde a Segunda Guerra Mundial, de forma mais organizada, e se torna BDSM como uma forma de unificar essas comunidades, de organizar em torno do consenso. Porque a partir do momento que a comunidade gay nos Estados Unidos começa a ver uma difusão do BDSM nas práticas eróticas em comunidades também heterossexuais, começa a perceber-se que existe alguns abusos que saíam um pouco da consensualidade. Então chega-se à necessidade de criar um acrônimo e uma comunidade unificada que fiscaliza, que ensina, que mentora, que faz workshops, justamente para que aquilo seja feito de acordo, com segurança, com consenso.  A gente vê que existem práticas, e na pornografia a gente pode ver isso também, especialmente na heterossexual, que são fetichistas, mas não são acordadas, ou não parecem ser acordadas, não parecem ser consensuais, então demonstram um certo nível de abuso.

Maria Beatriz: Por que você acha, justamente, que existe essa relação tão grande entre o BDSM e a pornografia?

Raíra Boher: Bem, na verdade as práticas eróticas do masoquismo erótico são anteriores à pornografia, então tem uma questão histórica. E, claro, como todas as práticas, as fetichistas também são difundidas com as mídias, sejam pelas revistas eróticas no início do século passado, mas especialmente com a internet. A internet difundiu muito a pornografia, a gente sabe disso, a gente tem consciência disso. E a internet difunde também os jogos eróticos fetichistas. Só que o BDSM é baseado em todos aqueles pontos que eu comentei contigo. A pornografia vai difundir as práticas, mas se ela não disser quais são suas bases, ela não está difundindo o BDSM, mas sim as práticas fetichistas. Os estudos antropológicos entendem que a pornografia é uma forma de ensinar o erótico para quem assiste. Eu entendo que proibir a pornografia não é uma solução, mas a pornografia precisa ser fiscalizada, precisa ser acompanhada e precisa ser cobrada. A gente entende que a prática do BDSM não é uma prática violenta, não é abusiva.

Print de tela realizado dia 24 de novembro de 2022

Com a difusão da pornografia online, qualquer pessoa tem acesso, inclusive crianças. E essa é uma questão diferente do BDSM. Acontece que, se as pessoas fazem vídeos pornôs com práticas fetichistas e consomem isso sem entender o que é o BDSM, elas vão estar consumindo o fetiche. E o pornô, como eu estava comentando, ele vai ensinar o sexo para as pessoas, mas isso não significa que as pessoas já não tenham fetiches. A pornografia difunde diversas práticas que não são, necessariamente, do BDSM. Existem movimentos que entendem que é preciso produzir um conteúdo que também elucide o que é o BDSM. Os recortes dos vídeos que vão parar nesses sites pornôs não dão conta disso e levam somente o fetiche. 

Então existem movimentos anti-proibicionismo em relação à pornografia e também do BDSM que entendem que é preciso produzir um conteúdo que elucide também o que é o BDSM. E os recortes dos vídeos que vão para esses sites pornôs não dão conta disso, levam somente o fetiche. A ideia de que o BDSM é, ou melhor, que essas práticas fetichistas, são difundidas apenas por causa da pornografia ou por questões psicológicas… não é assim que funciona. Claro que a pornografia vai orientar os nossos gostos também, apartir do nosso consumo de pornografia, mas os fetiches estão ali em todas as nossas práticas sociais na verdade, não só no fio erótico. Toda vez que a gente tem o apego ou a intenção do uso erótico dos objetos,não só o uso erótico, mas toda vez que a gente usa objetos. Toda mediação do ser humano, em vez de usar outro ser humano, já é uma relação fetichista. É uma relação muito anterior à pornografia. É uma relação que está nas nossas práticas cotidianas, na nossa relação com o dinheiro, a nossa relação com o computador, com o celular, e não necessariamente com o BDSM em si. O BDSM, na verdade, ele vem como uma resposta, uma forma de organizar, de forma consensual, para que seja prazeroso para todos.

Quanto mais nós acessamos tecnologias, criamos tecnologias distintas, mais desdobramos nossos fetiches. Inclusive nossos fetiches eróticos. Então a pornografia é uma forma de desdobramento desses desses fetiches. Mas a pornografia não seria necessariamente o problema, mas, sim, o tipo de pornografia que está sendo produzido e consumido.

Maria Beatriz: E por que que você acha que ainda existe um estigma tão grande com essa comunidade?

Raíra Boher: A comunidade em si é uma solução para muitas questões, porque a gente está falando sobre consenso, sobre diálogo, sobre autoconhecimento, que são valores primordiais para as relações humanas. Então a comunidade BDSM devia ser, na verdade, levada para a nossa vida em sociedade. Nesse sentido de negociar, de conversar, de dialogar. O que realmente pesa são as práticas fetichistas. Algumas práticas que não são entendidas como práticas consensuais. Por exemplo, o que eu vejo as pessoas um pouco mais preocupadas são nas relações de dominação e submissão, especialmente aquelas que são heterossexuais, que reproduzem muito a dinâmica violenta do machismo estrutural; e aquelas práticas de sadomasoquismo, que são práticas que envolvem spanking – a prática de bater, “jogos de impacto” que a gente chama. Só que essas práticas realmente não são bem-vistas, especialmente porque elas trabalham com limites que outras pessoas, não fetichistas, entendem como abusos. Mas para aquelas pessoas que praticam,fazem porque é bom para elas. Têm pessoas que gostam de sentir dor, e a dor está num liminar com o prazer. Então essas pessoas sentem a dor como uma forma de chegar no prazer extremo. Isso não é para todo mundo. Isso não é para qualquer pessoa. Isso é para quem gosta. Isso é para quem sente necessidade de explorar o seu corpo em outros sentidos, em outras práticas.

Mas, na verdade, o fetiche está em todas as relações baunilha. Em sites que vendem objetos eróticos, que praticamente todos os casais baunilhas usam algemas, chibatas, que são aqueles de impacto menor. Amarrara pessoa, o bondage, tapinha na bunda, muitas vezes um tapa no rosto… Essas práticas que são feitas no sexo baunilha, em relacionamentos que não têm nada a ver com o BDSM, já seriam práticas fetichistas. E no BDSM as pessoas vão trabalhar isso de uma forma mais segura para poder buscar maior prazer, maior êxtase, e desenvolvendo melhor essas práticas.

Eu acho que existe um preconceito muito grande por falta de conhecimento do que é a comunidade BDSM, por entender que essas práticas podem ser muito violentas, quando, na verdade, a violência está em práticas que não são consensuais, em práticas que não são desenvolvidas a partir de uma relação, a partir de um trabalho árduo de práticas constantes para desenvolver esse prazer. O sadomasoquismo erótico, o BDSM são jogos eróticos, de poder, jogos de prazer. E as pessoas talvez não entendam que o que está em jogo ali é o prazer, é o consenso, é a definição de limites, a negociação, o autoconhecimento. E aí as pessoas se assustam com o que é feito ali por ser muito distinto do sexo baunilha. Mas são práticas que já foram muito bem trabalhadas dentro desses jogos, por isso chegaram a esse limite. E para essas pessoas que praticam é super prazeroso. Então não é uma prática “ah, virei BDSM e eu quero apanhar muito”. Não é assim. Isso é muito difícil. Você é iniciante, né? Quando entra na comunidade, tem que começar estudando muito antes de começar a negociar, para depois poder praticar. E durante as práticas, ao longo de um período, você conseguir chegar nesses limites e encontrar prazer nessas práticas. As pessoas trabalham muito para chegar nesse êxtase. São técnicas corporais que são desenvolvidas, em duplas ou em grupos, para chegar em um lugar aonde o corpo vai além. O prazer é nesse encontro. 

Eu acredito que existe um preconceito com o BDSM, compreendendo que se pratica sem negociação, sem desenvolvimento de uma técnica corporal. As práticas fetichistas são desenvolvidas de forma que sempre se encontre o prazer de todos os envolvidos e sempre ser de forma consensual. E muitas vezes a gente vai ver no pornô somente a prática fetichista, a gente não sabe se há o consenso. A gente sabe que tem consenso porque a pessoa está gravando o vídeo, a princípio, quando há uma fiscalização; quando é caseiro a gente não consegue saber. Então o problema não é o obedecer em si, mas como as pessoas não entendem, não conhecem o BDSM, elas produzem ou consomem vídeos fetichistas. 

Maria Beatriz: E pensando nessa questão do estigma ainda. Filmes como “Cinquenta Tons de Cinza” ajudam ou atrapalham a discussão sobre a comunidade?

Pôster do filme Cinquenta Tons de Cinza (2015). Foto: Universal Pictures

Raíra Boher: Ajudam e atrapalham. Durante a minha pesquisa, eu trabalhei com alguns grupos distintos on-line. O que eu fiz, na verdade, foi seguir fluxos de praticantes de BDSM, para entender como eles pensavam, para interagir, para conviver, inclusive para me tornar parte desse desse mundo. E esse é um assunto constante, o Cinquenta Tons de Cinza, por quê? Ele foi um marco mesmo. A internet foi um primeiro marco e,talvez, ele tenha sido um segundo marco na difusão do BDSM. O problema é que ele romantiza o BDSM de um ponto negativo mesmo, porque primeiro que ele vai trazer aquele mito do amor romântico e da princesa, ou então da mulher que foi salva por um príncipe; no conto moderno um homem com dinheiro e vai poder fazer todas as vontades da pessoa. Então tem várias questões ali no filme que são bem complicadas. Por exemplo, no início ele até surge querendo fazer um contrato, pedindo para ela estudar, até aí é interessante. Mas o que ela faz? Ela abre o Google e joga “BDSM” e vai tentar entender. Em dois, três dias ou duas, três pesquisas você não entende, você tem uma noção básica. Você precisa, de fato, estar numa comunidade, num clube. Eles não fazem isso. Ele, como homem, dominador, só joga para ela pesquisar. Isso é um primeiro passo, mas isso não é o suficiente. Depois disso ele leva pra ela um contrato, que ela não assina. E eu até entendo porque ela não assina. Como é que ela vai assinar algo que não entende? Algo que ela não experimentou, algo que ela não negociou. Ele fala, “defina os seus limites, os seus gostos”, mas ela não sabe como definir nada disso. Então isso acontece muito quando chegam pessoas iniciantes que estão curiosas, que estão querendo entrar porque têm fetiches, elas já querem entrar praticando, não é possível. Você até pode fazer, mas o perigo é grande. Porque você não sabe ainda quais são os seus limites. Então para você começar, tem que começar com práticas bem mais suaves. E ir delimitando, encontrando esses limites e os seus desejos. É uma construção que leva tempo, que leva estudo, que leva negociação, que leva paciência também do parceiro que já seja do meio.

E no filme, o Grey não parece fazer parte de uma comunidade, ele é um homem solitário que foi iniciado por uma mulher que, pelo o que eu entendi, é uma dominadora. É uma forma de dar início? É, mas precisa ter muito estudo, precisa ter uma comunidade. Por exemplo, no filme vem depois algumas submissas ciumentas e violentas, querendo atacar a Anastasia – Anastasia o nome dela né? Agora me fugiu, mas acho que é. E isso não é o que o BDSM deveria ser. São pessoas que estão no meio, não estão fora do mundo, não estão fora das relações machistas e violentas. Mas o filme deixou tudo muito confuso, sabe?

Então muitos dos interlocutores de pesquisa que são praticantes do BDSM têm um ranço desse filme porque ele, de certa forma, traz interessados e curiosos, mas ao mesmo tempo você não fechou um contrato, você não tem o conhecimento, mas você está vivendo aquilo. Algumas pessoas do meio também vão criticar que se envolva o amor romântico com o BDSM, mas existem opiniões divergentes. A grande questão é: se uma pessoa apaixonada, que está entrando nesse meio através da paixão, ela talvez ainda não saiba como definir seus limites. E a paixão talvez a leve a fazer coisas que ela pode se arrepender ou não gostar ou pode se tornar um trauma. O BDSM tem como base a racionalidade, que a pessoa consiga estar sã, e a paixão talvez não nos deixe tão sãos assim para decidir. Então tem várias questões, vários pontos críticos. 

No filme, ao mesmo tempo que ele abre as portas para as pessoas buscarem entenderem, se excitarem com o erotismo do BDSM, ele também deixa muitos furos sobre o que é o BDSM.

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